Sobre O Tempo e o Vento
Assistindo ao filme (versão
extendida, dividida em 3 partes e transformada em minissérie) dirigido por Jayme
Monjardim, vamos a cada parte:
Parte 1 - li O Continente algumas vezes e estou relendo
para avivar as falas que amo, Ana Terra foi muito bem interpretada com toda a
beleza, as expressões, a fala e os gestos seguros (principalmente depois que
ela amadurece). Sente-se a solidão do lugar, as dificuldades, o silêncio da
mulher, sujeita apenas a observar e a obedecer. A apresentação do romance (e
todo seu desenrolar) entre Ana e o índio Pedro foi convincente: os calores, a
troca de olhares, o tempo passando e aumentando aquele sentimento, a entrega, a
descoberta da gravidez, a morte de Pedro. Depois, a união de Ana e seu filho, a
morte da mãe, a invasão e destruição do casebre. Por fim, ela e seu filho indo
embora para Santa Fé, recebendo a permissão de um Amaral, fazendo parte do
começo de um povoado, do começo da história Terra-Cambará.
Parte 2 - Thiago Lacerda
tem o porte, o sorriso e a beleza para fazer o Rodrigo parecer altivo,
cativante. É claro que, quem assistiu à primeira minissérie como eu, vai compará-lo
a Tarcísio. Tarcísio teve mais tempo para mostrar Rodrigo. Na adaptação do
filme, não dá tempo para apaixonar-se por Rodrigo, sentimos falta dos detalhes minuciosos do livro onde lê-se que até os
homens ficavam admirados e enciumados com a presença dele ("o diabo do
homem tinha feitiço"), certos sentimentos são difíceis de serem
representados e não cabiam em um trecho tão curto de tempo. O adaptador teve
que fazer milagres. Por isso, na parte 2, o romance entre Rodrigo e Bibiana não
me pareceu tão visceral, mas Rodrigo realmente amou Bibiana e esta apaixonou-se
exatamente por aquele homem mulherengo, falastrão, amante de guerras,
transbordando vida em cada gesto (vê-se mais desse sentimento na parte 3). Na
juventude, Bibiana apareceu um pouco apagada, creio que também é uma personagem
difícil de interpretar, ela parece submissa, introspectiva, o oposto de Rodrigo. A vida
dela é esperar por ele. Creio que esse é um dos motivos do tema "O Tempo e
o Vento", os dois maiores companheiros de Bibiana.
Parte 3 - sinceramente, ao
ler a obra, os descendentes dos Terra-Cambará não ganharam minha admiração, Bolívar
e depois Licurgo não me convenceram. Por isso, creio que resumiu-se O Retrato e O Arquipélago em um trecho só do filme. Bolívar tem o sangue quente de Rodrigo, mas
apaixona-se por uma mulher doente que o domina. Luzia é quem ganha destaque.
Luzia é uma rival para Bibiana, que agora sim mostra a que veio (manter a
família em seu chão), descobre-se por trás daquela submissão uma mulher forte,
determinada, sua guerra é vencida em silêncio, com a persistência. Ela só
descansa quando sua casa e seu chão voltam ao comando dos Terra-Cambará,
representado agora por seu neto Licurgo.
Ao todo, gostei do resultado,
acho muito difícil adaptar uma obra dessa grandeza, eu também me prenderia ao
Continente. Por isso, achei muito boa a ideia de começar pelo final, colocando
Bibiana mais velha contando a história, foi uma maneira de já adiantar o
demorado cerco ao casarão e, assim como ela começou, ela fechou bem a história. Destaque
para a fotografia e, para a primeira parte, mais detalhada.
Como li em algum site: "quem conta um conto aumenta um ponto", por mais
que sua versão seja o seu ponto de vista. Assim como, quem dá opinião, arrisca
errar ou acertar, mas é novamente um ponto de vista.
Por isso, trago agora, a opinião de quem realmente entende da obra, Luis Fernando Verissimo para Zero Hora:
A vantagem da microssérie O Tempo e o Vento sobre o filme é que na série há mais tempo para desenvolver a história e incluir personagens que não apareceram no cinema, ou apareceram pouco.
Já se viu isso no primeiro episódio, que incluiu mais cenas do Pedro Missioneiro nas Missões. Eu havia lamentado que a evocação da Rosa Mística, um dos nomes da Virgem Maria na literatura sacra, não tivesse sido mais aproveitada no filme. A devoção do Pedro à Rosa Mística é muito bonita. No filme, ele chama a Ana Terra de Rosa Mística, mas a citação fica meio perdida, por falta de antecedentes que na TV estão explícitos. O Pedro Missioneiro é um personagem importante porque ele incorpora o segmento chamado A Fonte, no livro. É com o Pedro Missioneiro que o mito se transforma em História. Pode-se até dizer, com um certo exagero, que ele inaugura a história do Rio Grande do Sul no ventre da Ana. A fonte, do título, é ele. O punhal de prata que ele traz da Missão é a ligação dele com o passado, com a Europa, com os sonhos de salvação dos índios e a regeneração da humanidade dos jesuítas (o título de O Tempo e o Vento era para ser “O Punhal de Prata”), mas o passado, o mito, termina com ele. Depois da sua morte, Ana e o filho Pedro vão ajudar a fundar Santa Fé, vão civilizar-se. Vão começar a História.
Na microssérie, também há tempo e espaço para Luzia, a mulher de Bolívar, filho de Rodrigo e Bibiana. Luzia é uma anomalia no romance, uma mulher complicada e frágil numa terra de mulheres simples e fortes, e por isso mesmo uma personagem fascinante.
Ficou faltando, tanto no cinema quanto na TV, outra personagem feminina importante, Ismália Caré. Os Caré representam o avesso da nossa tradição épica, são o Rio Grande do Sul da miséria, dos despossuídos em meio a uma cultura de fartura. Compreende-se, não daria para incluir esse lado na série. Mas, no livro, embora isso tenha sido pouco notado, com os Caré o autor escreve um contraponto para sua própria história. E História.
A ideia da narração por meio do encontro da Bibiana velha com o capitão Rodrigo redivivo era arriscada, mas deu certo, no filme e na série. Palmas para os roteiristas e para o diretor, e principalmente para a Fernanda Montenegro e o surpreendente Tiago Lacerda, que fazem um dueto admirável.
Fonte:
"O tempo passou. Dizem que o tempo é remédio pra tudo. O tempo faz a gente esquecer. Há pessoas que esquecem depressa. Outras apenas fingem que não se lembram mais."
(VERISSIMO, E. O Continente. In: O Tempo e o Vento, Tomo II)